O Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF se solidariza com a família do querido professor Gláucio Ary Dillon Soares e com toda a comunidade da ALACIP. Sua paixão pelo rigor acadêmico foi, é e será uma inspiração para todos nós!
Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UENF)
Reproduzimos uma entrevista que lhe fizera Glenda Mezarobba em Dezembro de 2019 para a revista Pesquisa FAPESP.
“Costumo dizer que tropecei no direito, não escolhi”, conta o carioca Gláucio Soares, aluno da primeira turma da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Filho único de uma professora primária e de um contador, Soares ingressou na instituição em 1953, em uma época em que ciência política e sociologia não eram disciplinas autônomas, “mas capítulos do direito”. Não demorou muito para se encantar pelas ciências sociais. “A área específica do conhecimento pela qual me apaixonei não tinha representantes no Brasil e era estimulada por aquilo que eu lia: livros que tratavam de pesquisa e de resultados de pesquisa”, recorda. “O curso de sociologia e política da PUC [Pontifícia Universidade Católica] teve muito mais impacto sobre mim do que o de direito.”
Considerado um dos fundadores da sociologia moderna no Brasil, Soares inovou ao utilizar métodos qualitativos e quantitativos em pesquisas sociais. Em 1967, com “Socioeconomic variables and voting for the radical left: Chile, 1952”, artigo escrito em parceria com Robert Hamblin, professor de psicologia social na Washington University em St. Louis, nos Estados Unidos, tornou-se o primeiro latino-americano a publicar na American Political Science Review. Seu livro Sociedade e política no Brasil, lançado em 1973, rapidamente se tornaria referência entre os trabalhos de sociologia eleitoral no país. “A sugestão de publicá-lo pela Difusão Europeia [Difel] foi de Fernando Henrique Cardoso”, diz, lembrando que os dois estiveram juntos no Chile. “Naquele tempo ele, e quase todos no mundo acadêmico, estava à minha esquerda. Eu fui para a esquerda sem sair do lugar porque o Brasil foi para a direita”, constata.
Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), Soares conta que gosta de escrever: “Antes tinha preocupação com elegância, agora quero chegar na alma da pessoa que lê. Eu acredito em alma”. Pai de cinco filhos e avô de seis netos, nesta entrevista, concedida no apartamento onde vive com a mulher, a cientista política Dayse Miranda, em frente à sede do clube Fluminense, na zona sul do Rio, fala de sua trajetória profissional e do novo objeto de pesquisa.Idade 85 anos
Especialidades
Sociologia política e criminologia
Instituição
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj)
Formação
Graduação em direito pela Universidade Cândido Mendes (1957), estudos em sociologia e política pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1958), mestrado em direito pela Tulane University (1959) e doutorado em sociologia (1965) pela Washington University em St. Louis
Produção
11 livros escritos ou organizados, 43 capítulos de livros
Você cursou direito, sociologia e ciência política. Quando precisa indicar sua profissão, como se define?
Brinco um pouco com isso. Às vezes, coloco sociólogo. Nos últimos anos tenho trabalhado muito com criminologia – mas não o direito criminal nem o direito de processo penal. Jurista, não me defino de jeito algum. Desencantei-me muito rápido com o direito.
Por quê?
Porque o direito não comporta afirmações essenciais como: “Eu desconheço, portanto quero saber”. É: “eu já conheço”. Vai além das diferenças entre ciências do ser e do dever ser. A atitude de que “eu admito desconhecimento neste momento, por isso preciso pesquisar” é o que, para mim, representa a ciência. Também é uma barreira que encontro. Não só disciplinar, no caso do direito, mas teórica. Algumas teorias foram importadas como respostas e não como colocadoras de problemas.
Você não via desafio científico no direito?
Não creio que havia desafio científico. Aqui no Brasil, via a aplicação de códigos. Fiz mestrado em direito comparado e hoje esse conhecimento me vale como parâmetro. Conhecendo, desde dentro, a maneira de pensar de um estudioso do direito, eu a contrasto com a maneira de pensar de um efetivo pesquisador. Ou seja, houve desencanto, mas também utilidade.
Transparece de sua produção certa preocupação com os métodos de pesquisa em ciências sociais. De onde vem isso?
Recebi tratamento de choque com as primeiras leituras, ainda antes de ir para os Estados Unidos. De um lado estavam afirmações gratuitas, em nome da sociologia e da ciência política, e de outro, perguntas a serem respondidas. Me questionei: nós sabemos tudo isso? Claro que não. Lembro que brigava com marxistas ortodoxos que, para buscar solução para problemas brasileiros, liam, por exemplo, O manifesto comunista, de 1848. Os mais inteligentes recorriam aos Grundrisse, que é a pesquisa que [Karl] Marx [1818-1883] publicou no final da década de 1850. O pessoal não conhece o Marx pesquisador. Conhece o Marx teórico, o revolucionário.
E a você só interessa o Marx pesquisador?
É o que mais interessa, certamente. Marx ficou 13 anos em uma biblioteca buscando, por exemplo, séries históricas de salários. Descobri isso em Paris, quase por acaso, ao encontrar a obra em uma livraria.
Voltando à sua preocupação com os métodos de pesquisa, em artigo publicado há 15 anos, você registrou o que considerava a “precariedade do ensino de técnicas de pesquisa e métodos quantitativos”. O que mudou de lá para cá?
Talvez tenham sido ampliadas diferenças entre disciplinas durante esse tempo. Houve um momento na ciência política, mas não houve na sociologia, em que um grupo de pessoas que tinha um bom mestrado no Brasil voltou dos Estados Unidos com um bom doutorado. Em Minas Gerais, Júlio Barbosa criou um programa de bolsas na pós-graduação, quando isso praticamente não existia, e propiciou o estabelecimento de uma elite intelectual, uma geração que tem 70 anos hoje, no mínimo. Cada um desses que voltava, bem treinado em métodos, provocava em mim nova esperança. Porque há muito o que descobrir. Não temos de ficar filosofando o dia inteiro, lendo [Johann Wolfgang von] Goethe [1749-1832] e [Friederich] Nietzsche [1844-1900]. No Brasil, o uso dos métodos em ciência política melhorou um pouco. Na sociologia não tivemos o desenvolvimento que os métodos qualitativos tiveram na antropologia.
Na sua avaliação, portanto, se olharmos neste momento para as ciências sociais, a sociologia aparece em desvantagem.
Em termos de rigor metodológico, sim. O uso de clássicos europeus, que foram ensinados como autoridades, foi muito prejudicial. Na sociologia ocorreu o que, em certa medida, acontece no direito, em que o que mais pesa é a autoridade. A ideia de autoridade é prejudicial para a ciência. Na ciência, não interessa o quem, mas o que e o como. O nome de quem faz é irrelevante e, quando há mitificação, o aluno tende a tomar aquele conhecimento como verdade. Ponto. Vejamos o caso de [Émile] Durkheim [1858-1917], certamente um grande pesquisador e pensador francês. Na academia brasileira, quando se fala em suicídio, a primeira obra que vem à mente é O suicídio, publicada por ele em 1897. Mas na própria França, 50 anos antes de Durkheim, [André-Michel] Guerry [1802-1866] produziu dados interessantes. É só colocar no Google Acadêmico o termo suicide para encontrar centenas de milhares de trabalhos de pesquisa sobre o assunto. Há cinco ou seis anos, fiz uma análise, que não publiquei, sobre o conteúdo das disciplinas ensinadas na pós-graduação e que revelou coisas interessantes.
Por exemplo?
Fiz um levantamento nacional, sobre ementas e bibliografias dos cursos de sociologia em que há pós-graduação, e verifiquei quem eram os autores recomendados. Os principais eram europeus. Havia também alguns norte-americanos, poucos brasileiros e praticamente nenhum outro latino-americano. Africanos e asiáticos, não havia. Isso não quer dizer que não haja ciência social na Ásia e na África. Quer dizer que simplesmente ignoramos essa produção. O título do estudo seria sociologia arcaica. Não publiquei porque teria de dedicar mais tempo do que eu dispunha para finalizar o trabalho, atualizando os dados, e haveria muita pancadaria. Não estava disposto a entrar nessa briga.
Mas foi a paixão pela sociologia que o fez sair do Brasil no final da década de 1950.
Sim, resolvi sair para me desenvolver. Foi uma decisão arriscada. Antes de partir, a única conversa que tive sobre o assunto foi com o padre [Fernando Bastos de] Ávila [1918-2010], fundador do Instituto de Sociologia e Ciência Política da PUC. Diante da minha hesitação, ele me disse: “Lá fora os recursos são tão maiores que, não importa o que, você vai aprender”. Meu primeiro destino foi a Tulane University, nos Estados Unidos. Fiz mestrado em um ano. Depois fui para o National Opinion Research Center [Norc], para aprender a fazer pesquisa.
Como foi esse aprendizado?
A primeira lição foi que nas ciências sociais é possível produzir conhecimento em cima de dados coletados por entrevistadores, organizados por codificadores e analisados por estatísticos, sem nunca ter visto o entrevistado. A segunda surgiu no campo e limita a primeira. Quem não entrevista perde muito. Fui jogado no campo para sobreviver, ganhava por entrevista, no gelo de Chicago. Um dos autores da pesquisa era o sociólogo Elihu Katz e no questionário que ele havia elaborado havia muitas perguntas sobre aborto. Fui incumbido de entrevistar moradores de um bairro italiano. Uma mulher não quis responder, reclamou para um monte de homens e os caras vieram para cima de mim. Tive de fugir. E entendi que, naquele momento, havia feito perguntas que, naquela subcultura, não eram possíveis de serem feitas. Aí me dei conta de que o tema aborto poderia ser estudado, mas a metodologia teria de ser diferente.
Muitos acadêmicos estavam à minha esquerda. Fui à esquerda sem sair do lugar porque o Brasil foi à direita
Você também foi um dos pioneiros em pesquisa eleitoral no Brasil. Como isso se deu?
Foi no pleito de 1960. A eleição para governador no então estado da Guanabara estava quentíssima. À direita, Carlos Lacerda [1914-1977], da UDN [União Democrática Nacional]. À esquerda, Sérgio Magalhães [1916-1991], do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro]. E um terceiro candidato, meio carismático, meio violento, com mais presença na Baixada Fluminense, Tenório Cavalcanti [1906-1987], pelo PST [Partido Social Trabalhista]. Havia várias pesquisas, que na época eram chamadas de prévias. Uma das mais ambiciosas era realizada pelo jornal Correio da Manhã. Pensei: essa é a minha chance. Botei meu único terno e fui me apresentar ao Correio. O trabalho foi contratado. Entrei no jornal pela manhã e saí à noite com o questionário sendo impresso. Eram 40 e poucas perguntas. Treinei os entrevistadores e tive muito problema com a veracidade das informações e desonestidade. Havia dois tipos de fraude. O mais comum: o sujeito ia ao lugar onde deveria ser aplicada a pesquisa, fazia duas ou três perguntas iniciais e ia embora, para preencher os questionários em casa. Outros nem iam, preenchiam tudo em casa. Tínhamos um sistema de checagem, que me permitiu detectar as fraudes e refazer as entrevistas. Com os dados oficiais do TRE [Tribunal Regional Eleitoral], fizemos uma ponderação dos resultados considerando as zonas eleitorais. Havia algum desvio, mas acertei o resultado da eleição na mosca: Lacerda ganhou, mas a margem foi pequena.
Você saiu consagrado?
Não, eu saí corrido. Tenório Cavalcanti, conhecido como o homem da capa preta, era um político agressivo, andava sempre com uma metralhadora, apelidada de Lurdinha. Ele mandou uma carta para o jornal, dizendo algo como: “Os intelectuais criam suas mentiras e acabam acreditando nelas. O senhor está errado, está me prejudicando”. Não sei se o meu medo dirigiu a minha leitura ou se a minha leitura aumentou o meu medo. O fato é que decidi sair do Rio. Fui para Brasília, para a inauguração da capital. O pessoal do Correio da Manhã ficou tiririca comigo porque tinha prometido mais dois artigos que acabei não entregando. Mas a qualidade da pesquisa foi reconhecida inclusive pelo jornal concorrente.
Você teve oportunidade de se estabelecer nessa área de pesquisa eleitoral e de mercado, mas declinou. Por quê?
Naquela época, quando a Marplan me convidou para trabalhar, eu morava com meus pais, vivia com praticamente nada. Foi uma decisão de vida. Se tivesse aceito, em alguns meses compraria um carro, alugaria um apartamento em área nobre, satisfazendo meu burguesismo comprimido e não voltaria ao mundo acadêmico rapidamente. Optei por continuar duro. Nunca me arrependi.
O que a ciência lhe dá que o mercado não lhe daria?
Uma identificação com o fruto do meu trabalho. Dá alegria e tristeza. É muito mais emotiva, mas eu controlo os efeitos dessa emotividade com técnicas duras. Eu as uso até mesmo quando faço análise de conteúdo. Enquanto eu estava na Washington University, o Gilbert Shapiro, meu professor de sociologia, por exemplo, analisava os cadernos [Cahiers de Doléances] de 1789, em que a população da França registrava suas queixas, durante a Revolução Francesa. Era um scholar. Isso me encantou. Ninguém fazia trabalho tão cuidadoso e detalhado e eu pensei: quero fazer isso um dia!
O ensino de clássicos europeus como se fossem autoridades é prejudicial. A ideia de autoridade prejudica a ciência
Quando você começou a fazer análise de conteúdo?
Há tempos. Porém, mais recentemente, quando o Google facilitou o acesso aos seus 30 milhões de livros, tornou-se possível um novo tipo de análise para quem, como eu, desejava testar a evolução do marxismo, como teoria, e seus conceitos. Selecionei conteúdos fundamentais, que poderiam estar nos livros pesquisados, como, por exemplo, consciência e conflito de classe, proletariado, burguesia. Usei cinco idiomas: inglês, alemão, francês, espanhol e italiano. A ideia era verificar qual o efeito do fim da URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas] na disseminação do conceito. Eu não tinha um conjunto integrado de hipóteses, tinha curiosidades. Por exemplo, queria saber se o declínio havia começado antes da queda do Muro de Berlim, em 1989. Depois, resolvi descobrir, ainda seguindo essa análise empírica do pensamento, o que aconteceu com o pensamento da Cepal [Comissão Econômica para América Latina e Caribe] e dos cepalinos. E a censura a [Leon] Trotsky [1879-1940] na Alemanha nazista.
Quais foram suas descobertas?
A Cepal não morreu, se reinventou. Em relação ao marxismo, duas conclusões se impuseram: nenhuma teoria sociológica teve tanto impacto, durante tanto tempo, como o marxismo. O marxismo seguiu o percurso esperado de uma grande teoria: dominou o pensamento sociológico durante décadas, foi afetado por acontecimentos na política mundial e nas políticas nacionais e teve uma queda acelerada, que continuava no início deste milênio. A grande orientação teórica geral foi substituída por várias orientações com escopo e ambições mais reduzidas. Esse instrumento, de análise de frequência de menções, menos sofisticado, é o que uso para refletir sobre os rumos da ciência política e da sociologia. A versão mais sofisticada, mais exata, é um cálculo do próprio Google, o Ngram, um algoritmo. Foi essa ferramenta que utilizei na reflexão sobre a ascensão e queda do marxismo. As referências a Trotsky em russo despencaram depois da ruptura. Começaram a cair já nos anos anteriores à ascensão de [Adolf] Hitler [1889-1945] e só voltaram a subir depois do nazismo.
Seu doutorado, sobre desenvolvimento econômico e radicalismo político, também permanece inédito.
Não publiquei minha tese, defendida em 1965. Naquele momento, ainda tinha um namoro com uma forma que seria mais inteligente e criativa do marxismo. Usei um conceito do sociólogo norte-americano Robert Merton [1910-2003] para explicar o voto radical de esquerda, mundo afora. Analisei muitos indicadores. Como resultado, saíram dois fatores que não são ortogonais, não são independentes um do outro, se correlacionam, mas não são idênticos. Chamei um de desenvolvimento econômico e o outro de desenvolvimento social. É o hiato entre os dois que explica o voto radical.
Quando surgiu seu interesse pela temática da violência?
Eu vi o que [Augusto] Pinochet [1915-2006] fez no Chile. Quando estava na Flacso [Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais], fui à Argentina e vi o que os militares argentinos fizeram. E aqui, também. Passei 21 anos coletando dados na surdina, no Brasil. Meus artigos iniciais sobre o tema mostraram, por exemplo, que as cassações políticas, ocorridas durante a ditadura [1964-1985], foram orientadas primeiro pela relação com a FPN [Frente Parlamentar Nacionalista], segundo, com o partido que o parlamentar estava filiado. Anos depois, predominava a maneira como ele votava em projetos de interesse do governo. É o que definia se perdia o mandato ou não. A parte legislativa dessa pesquisa foi feita com Sérgio Abranches. Meu interesse pelo tema, que começou com a violência política no Chile, Argentina e Brasil, depois foi direcionado à violência na sociedade.
A redução da violência começa com o controle das armas e passa pelo conhecimento científico
Foram mais de duas décadas de pesquisa nessa área. Que trabalhos você destaca?
O livro Não matarás [FGV, 2008]. Trabalhei mais de 10 anos nele. Gosto também de uma pesquisa sobre o impacto do Estatuto do Desarmamento, que fiz com Daniel Cerqueira, do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. Nossa estimativa é de que nos 13 primeiros anos de sua vigência, portanto até 2016, o estatuto salvou 121 mil vidas. É um trabalho de divulgação científica, que ressalta a necessidade de se discutirem os efeitos do estatuto não apenas a partir do momento em que ele entrou em vigor, mas analisá-lo em relação à tendência anterior na taxa de homicídios, que era de crescimento muito mais rápido. Os resultados não deixam dúvida: arma de fogo é um desastre. Sua posse aumenta dramaticamente o número de acidentes domésticos. O livro As vítimas ocultas da violência no Rio de Janeiro [Civilização Brasileira, 2007], que publiquei com Dayse Miranda e Doriam Borges, é relevante à medida que mostra o sofrimento, amplamente ignorado, das várias pessoas que têm suas vidas massacradas, para cada morte violenta registrada.
No caso do Brasil, é possível resolver o problema da violência?
Não podemos resolver, no sentido de acabar com a violência. Mas podemos reduzi-la e isso começa com o controle das armas e passa pelo conhecimento científico a serviço de políticas públicas. Sabemos, por exemplo, que quem termina o ensino médio tem um terço de risco de ser assassinado de quem não está na escola. Os meninos são 12 vezes mais suscetíveis do que as meninas e ser negro é um importante fator de risco. Se pensarmos na imagem de um homem apoiado nos ombros de outro homem, e assim sucessivamente, as vidas salvas chegariam a uma altura de 10 quilômetros, se a taxa de homicídio entre os negros fosse idêntica à dos brancos. Doriam Borges e eu usamos esses dados no artigo “A cor da morte”.
Durante muitos anos você lecionou fora do país. Como foi essa experiência?
Dei aulas nos Estados Unidos, na Inglaterra, no Chile e no México. Lecionei mais nos Estados Unidos do que aqui, no Brasil. Foram 40 anos dando aula fora e fazendo pesquisa. Os alunos norte-americanos são, no melhor sentido da palavra, quadrados. São obedientes, cumprem o combinado, leem o que você manda ler. Já o pessoal da Flacso refletia a América Latina da época: os estudantes do Cone Sul chegavam muito mais bem preparados do que os demais.
Na pós-graduação, foram 31 orientações de mestrado e 11 de doutorado. Você gosta de orientar?
Orientei muita gente, orientar é um prazer, mas também é uma fonte de ansiedade. Com frequência aceitei orientar pessoas “complicadas”, baseado em um estudo que fizemos na Flacso, no início da década de 1960. Esse estudo indicava que a universidade perdia mais alunos por problemas pessoais do que por dificuldades acadêmicas. A partir da minha experiência, arrisco dizer que ao longo desses anos houve deterioração do ensino universitário no Brasil. Mas esse é um preço necessário, que tem de ser pago. A democratização da sociedade significa que a universidade não pertence mais só à elite.
A sociologia brasileira cuidadosamente evitou tratar de emoções. O ser humano vivencia o amor. Por que não estuda o amor?
Como lidou com o financiamento à pesquisa, ao longo de sua carreira?
Hoje faço só pesquisas artesanais. Acredito nesse proceder. Fui muito influenciado por C. Wright Mills. Poucas vezes pude contar com financiamento. Não tenho faro para detectar fontes de financiamento. Procuro cobrir todas as etapas de investigação pessoalmente. Quando fui para Tulane, em Nova Orleans, tive uma bolsa da Fundação Rockefeller, recebia US$ 132 mensais. Aqui, tinha uma bolsa da Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro]. Ela é dada a todos os velhinhos do Iesp, desde a incorporação do Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro]. A bolsa é de menos de R$ 5 mil e eu chamo de bolsa-sepultura porque para recebê-la é preciso ter mais de 70 anos, prestígio na praça e idealmente morrer em três anos. Eu não morri, mas quase, e a bolsa acabou.
Você escreveu, certa vez, que considera “um perigo” separar as áreas política e acadêmica. Por quê?
Esse é um conjunto com significativa interseção. Você aprende, e traz para o mundo acadêmico realidades não trabalhadas profissionalmente, a partir da simples observação de conversas, por exemplo. Isso tudo enriquece a área acadêmica. Se você se fecha em uma torre de marfim, perde o contato com a realidade. Deriva daí meu interesse pela empiria. Empiria é você, de alguma forma, entrar em contato com a realidade. Continuamente.
Vem daí também sua escolha por temas considerados pouco ortodoxos no mundo acadêmico? O que está pesquisando agora?
Há três anos estou envolvido em um projeto denominado “Migalhas de amor”. A sociologia brasileira cuidadosamente evitou tratar de emoções. Fora da sala de aula, a gente fala de amor o tempo inteiro. O ser humano vivencia o amor. Por que não estuda o amor? Quantas pessoas estudam o amor no Brasil? Parti das revistas de ciências humanas indexadas na Scielo e, depois de utilizar seus mecanismos de busca, descobri que menos de 1% dos artigos menciona a palavra amor. Também não estudamos felicidade no Brasil. Não estudamos as emoções nas ciências sociais. É um contraste, por exemplo, com a Holanda, onde há um centro dedicado a pesquisar esse tema. Eu vejo o amor como algo extremamente poderoso e comecei a fazer uma análise da literatura acadêmica; onde há dados secundários, eu pego.
O que quer entender com essa pesquisa?
Por exemplo, qual efeito do amor nas relações sociais? Sabe-se hoje que os filhos que têm ambos os pais em casa são menos afetados por problemas envolvendo notas baixas, álcool, cigarro e drogas. O que aparece na literatura científica vai além: os pais que leem com os filhos, dedicam tempo aos filhos, elogiam quando há êxito e podem ser disciplinares, produzem filhos com menos riscos. A presença física e a expressão de afeto são importantíssimas. Reduzem muito, por exemplo, o risco de suicídio. Fora da família, expressões de amor também são relevantes. Velhinhos que não tiveram filhos e, portanto, não podem ter netos, mas ajudam outras pessoas, vivem mais, indicam estudos. A solidão, tema que cresce na análise da bibliografia produzida nos últimos 200 anos, é a grande assassina na terceira e quarta idades. Também são mortes evitáveis à espera de políticas públicas inteligentes.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.