Escriben Gláucio Soares y Christian Lynch sobre la trayectoria y obra del destacado académico brasileño.
Wanderley em tonalidades agridoces
Wanderley Guilherme dos Santos não era fácil. Quando discordava, batia e batia pesado. Tomados pela emoção, poucos aproveitavam a crítica, sempre dura, mas frequentemente correta. Wanderley tinha o dom de ser conciso, de colocar em poucas palavras um pensamento complexo. Uma vez conversávamos e concordávamos a respeito do vício das ciências políticas e sociais no Brasil de se concentrarem na produção de indivíduos e de suas trajetórias e não na produção de ideias e teorias. Wanderley sintetizou: “teorias do quê e não terias de quem”. Em oito palavras resumiu todo um debate espalhado por inúmeros artigos e livros. Oito palavras, que ainda incluíram uma recomendação.Wanderley tinha pouca paciência com os que tergivesavam. Em uma defesa de tese de doutorado, candidato e membros da banca entraram em um debate que, como tantos debates, desenvolveu sua própria lógica, afastando o debate do tema da tese. Afirmavam e logo hesitavam. Impaciente, Wanderley interrompeu o debate e perguntou:“O que tudo isso tem a ver com a tese?” Ele mesmo respondeu: “Nada”.Um jorro de água gelada nos egos que viam, medrosamente, no debate sem rumo apenas um afago contínuo na sua vaidade.Ficou todo o mundo calado e a banca retomou a análise da tese.Para entender Wanderley é necessário colocar no papel e na nossa mente uma orientação que ele parece ter seguido, consistentemente: “Amigos, amigos; colegas, colegas; debates à parte”. Em outra ocasião, Wanderley criticou um artigo que escrevi… em 1962, sobre alianças e coligações eleitorais. A crítica veio mais de quarenta anos depois da publicação. Na mesma crítica, bateu forte nos trabalhos de outro colega, muito amigo nosso, que também trabalhava no IESP. Ele ficou indignado e hostil. Queria responder. Conversamos e ficou claro que, se deixássemos a acidez à parte, poderíamos melhorar muito os trabalhos criticados analisando as críticas de Wanderley, incorporando algumas. Ele, como Marcus Figueiredo, via ângulos que poucos viam.Em outra ocasião, parti de uma semelhança espacial entre o voto de partidos conservadores pré-1964 e a votação recebida por Lula no segundo turno da eleição de 2006. Tive a infelicidade de usar um termo consagrado nas análises pré-64, os votos dos «grotões». Pronto! Wanderley, petista de primeira hora, botou no papel: “somente a cabeça de quem escreveu é que pertence aos grotões do pensamento político etc.” Teve a delicadeza de não mencionar o meu nome. Fim de briga, fim de papo?Não.Repensando a correlação espacial, escrevi, juntamente com Sonia Terron, outro trabalho que recuperava o conceito de personalismo juntando-o ao de racionalidade. Muito melhor, diga-se de passagem, que a noção original que mereceu pancada do Wanderley.
Não obstante, o mais importante que desejo transmitir não é mostrar que as críticas de Wanderley, ácidas como eram, eram contribuições para melhorar o texto criticado. Quero mostrar tonalidades menos conhecidas, mais suaves, de Wanderley. Uma vez, no escritório dele, descobrimos que tínhamos uma admiração por Stephen Jay Gould. Eu tinha uma ressaltava a maneira como enfrentou o primeiro câncer, um mesotelioma do peritôneo. Um câncer letal. Dominou e venceu o câncer. Porém, vinte anos depois descobriu outro câncer, com múltiplas metástases que o matou. Conversamos sobre o entendimento de modelos caóticos que a leitura de Gould proporcionava. E outros temas, relacionados com as críticas de Gould ao racismo sutil de alguns pesquisadores. Ali vi Wanderley, o pesquisador entusiasmado, com curiosidade e tesão para pesquisar, ingredientes indispensáveis para fazer da pesquisa inteligente o vetor de toda uma vida. Por essas virtudes, e outras, Wanderley foi quem foi.Nessa conversa, vi outra tonalidade de Wanderley. O amor de Gould pela vida, evidente em The Flamingo’s Smile, provocou um sorriso carinhoso em Wanderley.Tive o privilégio de voltar a ver a face doce, humana, de Wanderley, mas não sei exatamente quando. Mais de dez anos depois. Estava no escritório, olhando sorridente para o espaço. Entrei e perguntei se estava bem (era óbvio que estava). Sem desviar o olhar, com os olhos levemente úmidos, disse: ”Estou muito feliz. Estou apaixonado.” Saí do seu escritório levando a imagem daquele sorriso feliz.Foi a última vez que o vi fora de um contexto de trabalho, de uma sala de aulas, de conferências.Sorrindo, feliz, apaixonado. Apaixonado, não só naquele momento. Apaixonado por ideias, teorias, políticas, gente, tudo.
GLÁUCIO SOARES
Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019).
Christian Edward Cyril Lynch[1] e Paulo Henrique Cassimiro[2]
Ao recordar a obra e o percurso intelectual do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos – falecido vítima de uma pneumonia no último dia 25 de outubro no Rio de Janeiro – a imprensa costuma referir-se à sua “profecia” sobre o golpe de 64, “Quem dará o Golpe no Brasil?”, publicada em 1962, quando ele era chefe do departamento de filosofia do extinto Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). O “panfleto” (como Wanderley o chamava) vai muito além da intuição profética atribuída ao autor. Trata-se de um exemplo notável de análise da relação entre as opções dos atores políticos e a crescente impossibilidade de uma saída da crise por via institucional: o golpe, na leitura de Wanderley, seria resultado da incapacidade das incipientes e frágeis instituições democráticas de 1946 em encontrar uma solução para a contradição cada vez maior entre setores das elites dominantes e a ampliação das demandas populares por cidadania. O golpe, que viria dois anos, levaria Wanderley e os colegas à aposentadoria compulsória com o imediato fechamento do ISEB pelo regime militar.
Após dois anos de dificuldades, Wanderley passou a integrar o projeto de Cândido Mendes para recriar uma instituição à imagem e semelhança do extinto ISEB, incorporando, porém, o instrumental científico-metodológico das ciências sociais norte-americanas. Destinado a formar intelectuais públicos, que legitimassem sua atuação, porém, cientificamente, nasceu o antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, o IUPERJ. Com o apoio da Fundação Ford, Wanderley partiria em 1967 para Stanford, compondo a primeira geração de cientistas políticos brasileiros. Quatro anos depois, ele retornaria para assumir a direção do IUPERJ para dar início o seu mais importante legado institucional: formar diversas gerações de cientistas e participar das mais importantes iniciativas de consolidação de pesquisa e pós-graduação no Brasil, como a criação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), fundada em 1977 numa articulação liderada por ele e Fernando Henrique Cardoso.
A obra de Wanderley, espalhada em cerca de 40 livros e dezenas de outros artigos, percorre uma diversidade crescente de temas e problemas. Ainda no período do ISEB, ele iniciaria sua célebre pesquisa sobre o pensamento político brasileiro – A imaginação política brasileira -, mapeando as diferentes tradições e interpretações sobre a realidade nacional e suas concepções de Estado, de desenvolvimento, de instituições políticas e outros temas centrais. Nesses estudos, já se anunciava o problema central de sua obra: a interpretação da acidentada trajetória brasileira rumo à construção de uma sociedade democrática. Nessa tarefa, Wanderley ousou pensar alto, dialogando com os grandes expoentes da ciência social estrangeira, sem qualquer complexo de inferioridade, coisa rara na academia latino-americana. Nesse sentido, uma de suas maiores façanhas foi equilibrar a análise científica, descritiva, com a defesa da democracia, normativa. Convicto de que não era possível democracia sem Estado de direito, ele advogava o liberalismo político identificado com o sistema representativo e partidário, condenando modelos de democracia plebiscitária. Por outro lado, coerente com suas convicções progressistas, Wanderley acreditava que a democracia precisava ser alargada e que só um regime de corte socialdemocrata poderia reduzir as desigualdades sociais que limitavam a sua potência. Por isso ele sempre se manteve fiel a uma orientação nacionalista que rejeitava como elitista a versão hegemônica do liberalismo que pregava o Estado mínimo.
O tema da democracia e das condições de sua possibilidade levou Wanderley a uma busca por novos instrumentos teóricos e empíricos. Suas obras se tornaram centrais para a interpretação da experiência democrática brasileira. Em 1979, em Cidadania e Justiça, Wanderley explorou a relação complexa entre a conquista dos direitos sociais e o papel central do Estado na construção de um modelo de “cidadania regulada”. Poucos anos depois, em 1964: anatomia da crise (republicada em versão revista e aumentada com o título O cálculo do conflito), Wanderley inventou o conceito de paralisia decisória para entender como o sistema político da República de 46 tornou-se incapaz de responder a um cenário crescente de fragmentação e radicalização política. No contexto de expansão da ideia neoliberal do mercado como centro da vida social, Wanderley publicou Paradoxos do Liberalismo (1988), um esforço teórico para entender a relação complexa entre política, Estado e mercado na construção da democracia. Quatro anos depois, em Razões da Desordem, ele estudava a persistente incapacidade brasileira em conciliar estabilidade política, consolidação democrática e ampliação da cidadania. O mesmo tema reaparece em 2006, em O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado, dessa vez focando no processo de transformação nas capacidades de ação do Estado brasileiro e no desmentido cabal às teses de que associavam o tamanho do Estado ao seu caráter supostamente patrimonial. Em seu último livro, A democracia impedida: o Brasil no século XXI (2017), Wanderley analisou as razões da instabilidade política e as circunstâncias que levaram à cassação do mandato de Dilma Rousseff, inventando o conceito de “golpe parlamentar”. Nesse sentido, ele conseguiu a proeza de ser um dos últimos “intérpretes do Brasil” de cunho ensaístico e o primeiro de seus cientistas políticos, no sentido moderno da expressão.
A
carreira intelectual de Wanderley Guilherme foi marcada por uma rebeldia às
ideias feitas, pelo rigor científico e pelo compromisso com a democracia. Incomodavam-no
as teses e interpretações acadêmicas consolidadas, tornadas lugares-comuns, e a
incapacidade crescente das ciências sociais em compreender as mudanças
contemporâneas. Neste sentido, seu gênio sempre o obrigou a posicionar-se na
vanguarda, desenvolvendo teorias que entendessem a totalidade do processo
social e que lhe permitissem, posteriormente, aplicações mais tópicas para
fenômenos mais localizados. Seu último curso ministrado no Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ),
denominado Introdução ao século XXI, buscava
entender a crise da democracia contemporânea a partir do que ele chamou de “fim
da sociedade industrial”, que daria origem a uma “sociedade intransitiva”, novo
conceito por ele inventado para descrever o mundo social do futuro. Ele
examinava uma literatura que explorava não só a ciência política, mas campos e
temas diversos como a engenharia robótica, a demografia, o estudo das
transformações históricas nos modos de produção, a informática e a sociedade da
informação. Wanderley, que vivia intensamente sua vida intelectual, lecionou
até a véspera de sua morte. Ele deixou três filhos, três netos, dezenas de
amigos e centenas de alunos. Embora também tenha deixado a ciência política
brasileira sem seu maior e mais importante desbravador, legou o exemplo de um
intelectual que buscou compreender as dificuldades teóricas e empíricas da
democracia brasileira, sem nela jamais perder sua fé. Exemplo a ser seguido
pelas gerações atuais.
[1] Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.
[2] Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DCP-UERJ).